segunda-feira, 11 de julho de 2011

de encontros com onças.

Ela sumiu.

Ela não consegue caminhar porque quebrou o pé esquerdo.

E por que não tem escrito aqui? Também quebrou a maquininha das idéias? Bateu a cabeça e ficou lelé-da-cuca?

Não, é que ela sabe pelo corpo. Uma parte dele avariada confunde todo o mecanismo de sapiência. Triste sina de quem é virado em bicho.

Bicho?

Lembram uma história que ela contou sobre o encontro com uma onça chamada Bernadete? Pois aconteceu de elas viraram uma só. Quando toparam uma com a outra, a onça espiou fundo os olhos dela e ela mirou firme os da onça. Deu nisso, viraram uma só, meio onça meio moça. Não se deve olhar muito certos seres que encontramos no caminho. Meio dia e seis da tarde, então, danou-se.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

notas encontradas em um grande caderno de capa vermelha.


Há sempre mais a dizer, mas me parece difícil explicar o desplazamiento. É algo de tristeza, tédio, timidez, solidão, ansiedade, estranhamento e medo. Medo porque eu sei que as experiências marcam, cavando ainda mais esse desplazamiento dentro de mim.

Eu percebo que nunca sei me portar adequadamente.

Tantas coisas que não se pode olvidar, ainda que se olvide,
não se pode!
Olvidar é uma maneira de não ter mais medo, porém alguns medos fazem morada
[e outros medos fazer amor?]
Não olvidar... Não duvidar
Falar a mim mesma como se eu fosse tu em viagem até meu corpo
Eu sou tu em meu corpo
Eu sou tua cabana, até quando queiras
Não disponho de nada
Não deponho por nadie
A vida sem vias
Salvação?
Dizem que é bonito lá fora.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

dentro.

Claro está que o tempo aqui dentro passa mais depressa do que a minha respiração pode acompanhar sem faltar o ar. Mas aqui dentro surgem lembranças ágeis não combinando com clima de imobilidade. Meu interior é um mundo também composto sabe-se lá de quais/quantos extra-humanos. Bebo chá de camomila para agradar o corpo e borrifo essência de alecrim no quarto de janelas sempre fechadas. Meus olhos de bugre, que minha mãe diz herdados de minha bisavó, cansaram das miradas entre quatro-paredes, entretanto, têm preguiça da luminosidade. No mais, eu me preocupo com o que dizem os profetas, não pelas profecias, mas pelo tom de gravidade o qual sempre me emudece.

quinta-feira, 31 de março de 2011

notas dos últimos dias de março.

Comprei um vestido florido (nenhuma novidade).
Quase não consegui sair da cama,
a vida anda muito crônica para encará-la.
Eu nasci em um rio escuro, lodoso, por isso sou meio peixe,
respiro mal fora d’água e gosto dos dias úmidos.
Ontem, um pássaro piscou para mim de cima da caixa do correio,
corri para abrir,
achando que era o sinal de que missivas me haviam chegado;
nem mesmo um bilhete.
Olhei feio para o pássaro e ele voou,
arrependida, chorei.
Ouvi um vizinho ensaiar trompete e ri dos desafinos,
dos dele, não dos meus.
Minha mão melhorou, mas a ferida ainda não fechou por completo
(alguma ferida fecha por completo?).
O médico disse que ficará uma cicatriz (nenhuma novidade).
Enfrentei uma barata como se isso fosse salvar minha vida,
a barata escapou
e eu desacreditei a salvação.
Fui ao cinema e chorei, menos do precisava,
mais do que o resto do público aprovou.
Vontade de parar com o choro e botar as barbatanas no rio.

sexta-feira, 25 de março de 2011

rosa e hernández.




Rosa e Hernández iam casar, mas ela acabou comprando uma bicicleta. Não que ela não amasse Hernández, não era isso. É que Rosa passava por cima de muitas coisas, mas mentira era algo que a machucava irremediavelmente. E Hernández mentia. Por medo, insegurança, canalhice, hábito, habitus, ou por tudo isso. Rosa ainda achava que ele era o amor de sua vida, porém descobriu que Hernández nunca seria o homem da sua vida, o homem com quem ela dividiria o peso da sacola de feira. Claro que perceber isso doía, mais do que quase tudo que já doeu. Rosa, entretanto, não tinha escolha, ou melhor, tinha, e escolheu que mais valia uma sinceridade na boca do várias mentiras dando rasantes. Ela sabia dos riscos, lembrava da música “no campo do amor, a mulher que não mente, não tem valor”. Mas os valores de Rosa eram outros, melhores? piores? Ela não saberia dizer, eram apenas outros. E Hernández era agora também um outro para ela, um outro que ela não sabia relativizar, não estando tão perto. Rosa aprenderia a ficar só, ela, com seus espinhos sinceros.

sexta-feira, 18 de março de 2011

modern romance.

[os dois estão sentados lado a lado em um bar, mesa de madeira, pouca luz, copos de cerveja]
Ela: Tu está bem? Não está sentindo dor?
Ele: O pé dói um pouco, mas estou bem. Tu notou que temos piercings iguais nas orelhas?
Ela: É?
[ela pega na mão dele, ele a olha tímido, meio sorriso, e ficam assim, carinhando um a mão do outro]
Ela: Eu acho que estou apaixonada pela tua doçura morena.
Ele: Fica, apenas fica?
Ela: Fico. Tu me ensina a andar de bicicleta?
Ele: Sem te deixar cair.
Ela: Eu acho teu nome esquisito.
Ele: Eu acho o teu nome bonito.
Ela: Eu te acho bonito.
Ele: Eu te acho bonita..., e esquisita.
[risos]

ao som de modern romance na versão do tv on the radio.

terça-feira, 8 de março de 2011

hacer amor.



por aqui, ainda não aprendemos a fazer amor por telepatia
sabemos fazer amor, isso sim.
hora de costurar novos tons na veste surrada.
posso bordar tulipas também em teu corpo,
só não peça para regá-las com nada menos que a vida.
a minha vida, for sure,
da tua, eu nada saberei além de arremedos
- o mostrado quando não se sabe/quer viver de todo –
medos? ainda temo o morno.
continuo a doer nos outros, e vice-versa,
porém agora contabilizo de outra maneira.
o estar-aqui é que não pode machucar.
marcar ≠ doer → no olvidar
amor? que es esto?
é costurar um mesmo tecido.

PS: Es difícil hacer el amor pero se aprende (Antonio Cisneros).

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sexta-feira, 4 de março de 2011

coisas que ela quer...



Ele tem uma cor que faz bem, uns olhos escuros que sabem mirar. Algo tão novo parecendo um antigo calor. Ele é pequeno, ela quer abraçar. Ele machucado, ela ninando, segurando no colo, segurando em si. Ela quer apertar a mão dele por um tempo sem relógio, conversar sobre os Azande, ouvir folk songs, recitar Cisneros, oferecer drops de laranja, qualquer coisa, mas de mão. Ela, branca e falante, agora fica corada e perde as palavras. Mas não quer esconder coisas boas, porque aprendeu a mostrar tudo de si para quem sabe ouvir. Ele sabe ouvir. Ela também tem fraturas, aquelas de sempre, as que ficaram ali, lembrando que existem quando o tempo está para chuva. Ela, sempre tão cinza, quer ser sol para ele, quer ter olhos que não sejam de nuvem. Ela quer aprender com ele a pedalar. Ela teria uma bicicleta com cestinho para colher flores (do campo, sinceras como a última noite) e presenteá-lo, com o vestido voando e um sorriso discreto. O sorriso dele também é discreto, mas ela sentiu caber ali dentro. Poderiam passear pela grande cidade, tímidos e trôpegos como Jacques Tati.

São pensamentos dela para ele.

Ela teme o desencontro, mas vê que caminhos diferentes continuam sendo caminhos. E caminhar (ou pedalar) pode levar até à beira de um lugar bonito, novo e com vento fresco.

Ele ainda não sabe, ela sussurra daqui:
- Eu vivo por dias mais frescos...
E o sussurro é também um convite.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

itaúnas II.

Os caminhos do pequeno vilarejo,
os atalhos de poeira percorridos por meus pés duvidosos.
Eu, acostumada com o asfalto, perco-me aqui.
Escuto as toadas e sei que é tempo de resguardo.
Desenho flores descombinadas com o lugar,
de(s)componho.
Acender um cigarro para a dona da mata
e abrir os caminhos.
Traçados de mim imaginando a grande cidade
na qual ele vive.
Ele, que eu nem sei quem é.
Mas e aqui?
E essa terra de reis trajando mantos de chita?
Parto a rodar montada em um cavalo-marinho.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

itaúnas.



Existem horas,
depois dos pandeiros e do banho no rio
em que ela pensa no estar junto.
Coisas da vida a qual muda mais do que ela,
Mesmo não se sentindo de todo.
E a dor volta comprimindo os músculos dos olhos,
inclusive quando ela enxerga à distância.
Algo dela a ficar na areia...
E cores na retina, mais vivência do que olhar.
Lembrando as coisas que importam.
Ela, a menina dos olhos de nuvem
nuvem nuvem
que chove quando todos esperam o sol.

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Cecília está sem relógio, não sabe a hora de retornar. Os caminhos sempre se abrem, mas as horas, quem sabe? Cecília a ouvir os pandeiros. Pequenos passos de quem esquece como bailar. No lo se, no lo se... Mira, Cecília, a rua de chão batido cortando a vila como tu já cortaste teu corpo. Mira o rio vermelho/amarelo a contar as histórias que tu não conseguias ouvir. Vamos, moça de flor, arruma o cabelo, veste uma cor e aprende o lugar. Escuta, Cecília, o canto gritado das mulheres da roda, vive o tambor. O lugar onde o mundo começou, onde tu aprendeste a ser flor e cor de crepom.