quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

sobre armários, processos e bolachas integrais...

Ela desanimava todas as manhãs, mal acordava e já desanimava. Ouvira uma história sobre um funcionário público bem intencionado que fora engolido por um processo com mais de 10 volumes. Tinha medo. Os processos acima do peso a assustavam. Dia desses aconteceu um estranho problema na renovação do contrato da senhora que passa o café. O serviço ficou prejudicado, ela quase adormeceu respondendo a um ofício. Também, esses ofícios eram sempre iguais, as respostas também o eram, ela admitia. Mas bem que ela tentava inovar, uma vez desenhara florzinhas na borda do papel. O chefe não assinara; talvez fosse alérgico a flores. Versinhos também o irritavam; nem todos nasceram dados a essas frescuras do lirismo. Desanimava. As divisões, setores e coordenações eram amedrontadores. Ela não conhecia ninguém que trabalhasse em lugar nenhum, era o fulano da divisão tal, o sicrano do setor x e o beltrano coordenador do programa b do governo federal. Será que eles tinham filhos, cachorro, medo de barata, ou aquelas coisas que “só a bailarina que não tem”? O pior: nada funcionava! Quer dizer, o contrato da senhora que passa o café voltou a vigorar, mas de resto, nada funcionava. E quando as coisas não funcionavam, ela acabava se achando cada dia mais gorda na frente do computador. Claro que isso também poderia ser pelas bolachinhas que ela deixava no gaveteiro – sobre os ofícios por responder e os relatórios antropológicos por analisar -, mas eram bolachas integrais. Ela costumava gostar de carimbos, quando criança sempre brincava de secretária e ficava carimbando tudo com o carimbo da mãe. Mas agora tinha um carimbo de antropóloga. “Carimbo” e “Antropóloga” eram duas palavras que não combinavam, soava esquisito. Ela chegava e casa sempre triste, largava a bolsa e choramingava um pouquinho. É que ela sabia que o pesado armário dos processos ia continuar abarrotado, mais e mais. E ela podia fazer tão pouco. E parecia que ele, o armário de ferro, estava se aproximando de sua mesa, cada dia um passo, com ar ameaçador e um sorriso de deboche.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

da canoa.

ando a estourar bolhas de sabão, furta-cor que flutua.
busco estourá-las antes da explosão,
o lançamento do orvalho-detergente-de-cozinha em direção a meus olhos.
caminho atravessando pontes de madeira e mirando os limos das pedras lá embaixo.
eu ganhei uma canoa talhada à mão,
aprenderei a remar como quem aprende a escrever
– a caligrafia dos remos.
cultivo uma desavença comigo mesma
– rego, adubo, podo, e coloco no sol,
a desavença está por florir:
bem-me-quer mal-me-quer bem-me-quer mal-me-quer...
eu não tenho a sabedoria de talhar madeira
e meu desequilíbrio talvez ponha a canoa com medo.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

primavera-verão.

Mas não é que as alergias voltaram com o calor?
E ela que achou estar imune.
Era cedo para esse torpor estar tão próximo, ainda era novembro.
Ela queria refrescar os dias como quem vende sacolé
(ou chup-chups se estivermos no Espírito – agora saudoso – Santo).
Sentia-se rejeitada até pelas máquinas de lavar roupa,
como se as voltas das lavadoras provocassem-lhe, propositalmente, enjôos.
Pintou as unhas,
espirrou,
dobrou a roupa,
espirrou,
leu um pouco,
espirrou.
Era a virada primavera-verão, algo dos ipês de fim de estação.
Cuidar das horas, não se atrasar, comprar um relógio novo, despertar.
Ela anotava também, comprar um ventilador, buscar sempre o frescor que nem sempre encontraria, mas buscar.
Rotações,
repetições,
espirro.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

para si.

Antes, bolinhas coloridas na lapela.
Agora, palavras em preto e branco lamentadas.
O aeroporto está fechado, sem atraso, sem turbulências.
As turbulências faziam parte das viagens – ela sabia – tanto das partidas do sul quanto das partidas do sudeste.
Lembrava do encontro em uma pensão duvidosa no cerrado – sentia saudade.
Lembrava do encontro em uma tarde mais quente que o suportável no Gasômetro – sentia saudade.
O pôr-do-sol ali já não a iluminava como antes.
Lembrava de tantas coisas, promessas: ela prometida, ele entregue.
Era sempre uma dor a mais, sempre uma marca rasgando a carne a mais.
Ela doía nela, ela doía por tudo e pela ausência dela mesma quando ele precisou.
Sangrava, junto com ele, ela sangrava.
Junto com ele, ela se ia, virava cinza a voar pelo céu de Vila Velha, ou de qualquer outra vila.
Sempre soube que um pouco sempre se ia junto.
Mas ela ia muito. Muito de si, de um si que ela nem sabia muito bem o significado.
Eles viveram tão pouco essa coisa de si, era sempre mais do que isso.
Eram sempre sonhos por tantas construções coletivas.
Agora ela só queria ter tido ele um pedacinho mais para si, só para si.
Ela parecia cansada de tanta coletividade.