Minha coruja de nome Clarabóia sumiu! O pior é ter sido tudo culpa minha. Ando desolada, não sei o que hei de fazer. Ai, ai. Bem, explico agora o sucedido:
O humor da minha ave já não estava muito bom, ela andava de cara amarrada desde o nosso retorno de Arambaré. Eu também era apegada ao lugar, entretanto, decidi vir; o inverno se anunciava e eu temi que a figueira não me esquentasse o suficiente. Antes de virmos, eu ainda falei:
- Podes ficar aqui, Clarabóia, eu me viro na capital da província,... e na primavera eu volto, há de passar rápido.
Clarabóia rodou a cabeça, sinalizando um “não” super reforçado. Assim, viemos, de mala e cuia.
A coruja sentia falta da lagoa, dizia que o lago-rio não era a mesma coisa. Eu concordava:
- Sim, é diferente, mas é bonito, Clarabóia, tente se animar.
Clarabóia estava achando Porto Alegre barulhenta em demasia, e implicava com as muitas pombas, dizia que em pombas não se pode confiar. Eu fazia de tudo para agradá-la, até a levei para passear de pedalinho no lago da Redenção, mas ela não gostou, sentiu tontura. No fatídico dia do sumiço, ela reclamou não haver pitanga na capital, sentia desejos por pitanga. Tentei conversar, meio irritada, confesso, mas tentei:
- Não é um problema da cidade, minha querida. Simplesmente não é época de pitanga, é certo que de Arambaré elas também sumiram. E tem mais: sei que a senhorita sabe disso melhor do que eu, estás reclamando para incomodar!
Clarabóia arregalou bem os olhos e, então, começou a piscá-los muito rápido(fazia isso quando percebia o choro vindo e queria disfarçar). Chamou-me de insensível e pousou na janela sem floreira, de costas.
- Desculpa, Clarabóia, não falei por mal. Mas ando cansada de tuas birras. Enfim, desculpa, vamos ficar de bem, vira pra cá, vou ler uns poemas para ti.
Ela virou um pouquinho o pescoço, mas continuou de bico para mim. Peguei o livro da Adília Lopes que rolava pelo quarto e pus-me a ler em voz alta. Clarabóia estava gostando, esboçou um sorriso inclusive. Mas foi então que tragédia aconteceu. Eu lia, desatenta, não me dei por conta o que dizia:
- “Tenho pelos meus poemas
a ternura que a coruja tinha pelos filhotes
mas não tenho a sua cegueira
porque sei que Diderot acha os meus poemas maus
a coruja disse à águia
podes comer os passarinhos que quiseres
mas não comas os meus filhos
os meus filhos são os passarinhos mais bonitos
que encontrares na floresta
a águia comeu os filhos da coruja
comi os teus filhos porque eram feios
disse a águia à coruja
as comparações são muito perigosas” ...
Clarabóia deu um berro, pôs-se a chorar, sem disfarce de piscadelas nem nada, pegou seu cachecol amarelo e bateu asas. Fiquei um tanto perdida, demorei a dar-me conta do que estava acontecendo. Quando percebi, ela já voava longe... Ai, que insensibilidade a minha!
Passaram-se já três dias e nenhuma notícia. Peço, se alguém a vir, fazer o favor de avisar que eu não queria magoá-la, a tenho em grande estima e não tive a intenção. Falem que sinto saudade e até terminei de tricotar aquele xale roxo o qual ela tanto me pedia. Digam que eu posso até reconsiderar voltar para Arambaré! O que não posso mais é ficar sem saber daqueles dois olhinhos arregalados que me faziam companhia nas noites de insônia, isso não... Ai de mim!
É na solidão que a falta é sentida.
ResponderExcluirTe entendo. Me entendes
Você pode aderir sim aos sonhos. E terá todos os seus direitos garantidos.
Te beijo.
Eu, quando miúdo, pensava cuidar de uma coruja branca.
ResponderExcluirSeu pequeno fragmento me fez voltar à minha recente infância.
Senti-me assim desta forma quando ela partiu. Os pêlos que me brotavam à face me fizeram esquecer. Julguei amadurecer e olvidei do passado que me fizera tão bem.
Um beijo, Bethânia!
Ai que fofo!
ResponderExcluirDeixe a 'Clarinha' voar de encontro a felicidade...
Aquilo que temos aprisionado e infeliz, deve ser liberto, ainda que doa - e dói - mas estrago maior é o permanecer sem sentido.
Se eu disser isso para os meus textos e meus poemas (que são as minhas corujinhas...) eles não fogem. Eles me bicam!!!
ResponderExcluirNão vá pensando que não ví (lí); mas matuto tanto;
ResponderExcluir... pensamento ruminante?.... inda não... inda pasto sobre as tuas palavras e vejo o vôo da clarabóia.
Logo, entendo esse bater de asas... sei que me será adubo precioso (como dizia meu avô). E, assim, quem sabe, virão palavras como aquelas florzinhas amarelas ou lilázes do campo?!...
Abraço!
Fábula, com humor e lirismo...
ResponderExcluirE eu, piscando os olhinhos, devo pedir desculpas por vir aqui menos do que devia (muito menos)...
E sempre me encanta seus comentários e sua presença lá.
Você está em Porto Alegre?
Beijos