quinta-feira, 27 de maio de 2010

o sumiço da coruja Clarabóia.

Minha coruja de nome Clarabóia sumiu! O pior é ter sido tudo culpa minha. Ando desolada, não sei o que hei de fazer. Ai, ai. Bem, explico agora o sucedido:

O humor da minha ave já não estava muito bom, ela andava de cara amarrada desde o nosso retorno de Arambaré. Eu também era apegada ao lugar, entretanto, decidi vir; o inverno se anunciava e eu temi que a figueira não me esquentasse o suficiente. Antes de virmos, eu ainda falei:
- Podes ficar aqui, Clarabóia, eu me viro na capital da província,... e na primavera eu volto, há de passar rápido.
Clarabóia rodou a cabeça, sinalizando um “não” super reforçado. Assim, viemos, de mala e cuia.
A coruja sentia falta da lagoa, dizia que o lago-rio não era a mesma coisa. Eu concordava:
- Sim, é diferente, mas é bonito, Clarabóia, tente se animar.
Clarabóia estava achando Porto Alegre barulhenta em demasia, e implicava com as muitas pombas, dizia que em pombas não se pode confiar. Eu fazia de tudo para agradá-la, até a levei para passear de pedalinho no lago da Redenção, mas ela não gostou, sentiu tontura. No fatídico dia do sumiço, ela reclamou não haver pitanga na capital, sentia desejos por pitanga. Tentei conversar, meio irritada, confesso, mas tentei:
- Não é um problema da cidade, minha querida. Simplesmente não é época de pitanga, é certo que de Arambaré elas também sumiram. E tem mais: sei que a senhorita sabe disso melhor do que eu, estás reclamando para incomodar!
Clarabóia arregalou bem os olhos e, então, começou a piscá-los muito rápido(fazia isso quando percebia o choro vindo e queria disfarçar). Chamou-me de insensível e pousou na janela sem floreira, de costas.
- Desculpa, Clarabóia, não falei por mal. Mas ando cansada de tuas birras. Enfim, desculpa, vamos ficar de bem, vira pra cá, vou ler uns poemas para ti.
Ela virou um pouquinho o pescoço, mas continuou de bico para mim. Peguei o livro da Adília Lopes que rolava pelo quarto e pus-me a ler em voz alta. Clarabóia estava gostando, esboçou um sorriso inclusive. Mas foi então que tragédia aconteceu. Eu lia, desatenta, não me dei por conta o que dizia:
- “Tenho pelos meus poemas
a ternura que a coruja tinha pelos filhotes
mas não tenho a sua cegueira
porque sei que Diderot acha os meus poemas maus
a coruja disse à águia
podes comer os passarinhos que quiseres
mas não comas os meus filhos
os meus filhos são os passarinhos mais bonitos
que encontrares na floresta
a águia comeu os filhos da coruja
comi os teus filhos porque eram feios
disse a águia à coruja
as comparações são muito perigosas” ...
Clarabóia deu um berro, pôs-se a chorar, sem disfarce de piscadelas nem nada, pegou seu cachecol amarelo e bateu asas. Fiquei um tanto perdida, demorei a dar-me conta do que estava acontecendo. Quando percebi, ela já voava longe... Ai, que insensibilidade a minha!

Passaram-se já três dias e nenhuma notícia. Peço, se alguém a vir, fazer o favor de avisar que eu não queria magoá-la, a tenho em grande estima e não tive a intenção. Falem que sinto saudade e até terminei de tricotar aquele xale roxo o qual ela tanto me pedia. Digam que eu posso até reconsiderar voltar para Arambaré! O que não posso mais é ficar sem saber daqueles dois olhinhos arregalados que me faziam companhia nas noites de insônia, isso não... Ai de mim!

quinta-feira, 20 de maio de 2010

da costela.

Eu quebrei uma costela, foi um pequeno acidente doméstico de uma pessoa não tão bem domesticada: eu. Quando se quebra uma costela, não há praticamente nada a fazer, só esperar. Eu não sou dada a esperas, e me custa saber que tenho algo quebrado dentro de mim (mais um algo seria o correto). Andei uns dias enfaixada, mas não gostei, me senti apertada, joguei as ataduras no lixo.
Daniel: - Tu é de vidro.
Eu: - Sim, sou de vidro, que no fundo é areia...
O vidro é frágil, eu sei, mas também pode ser bastante bonito, colorido, e se bem cuidado, dura até perto do para sempre. Mas o que mais me encanta são as cores, o reflexo delas surgido com o tocar dos raios-de-sol.

E por fim, eu até que gosto de cacos, desde que brilhem.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

outono outra vez.

Como se o frio trouxesse aquele cheiro que mora entre a barba e o pescoço do amor de sempre. Um amor que vive sob a pele, sob a carne, embaixo das unhas, dentro das marcas, dos poros do corpo. Eles se escondem do frio brincando de ser fogueira um no outro. O roupeiro em curva, a cama vazada e o abajur no chão: o quarto velho, o velho cheiro, a velha beleza dele ao gozar. Um amor tão Copacabana em uma cidade bastante ao sul. A vontade de acordar entre a geada e não sair do pequeno sítio de som de trem e piano; como se o trem e o piano fossem amigos antigos a contar segredos dele para ela. E tudo é tão branco quanto a geada. E tudo umedece com o sol mostrando cores as quais eles aprendem a apreciar. Ela come o doce cor-de-rosa, ele bebe o café pingado, e na mordida e no gole estão juntos entre mesas antigas de padarias estreitas no Uruguai. “Estamos casados”, ele diz, enquanto ela lhe arruma o cachecol e sorri um sorriso que é dele. O trem e o piano cantam, ele dança engraçado, ela procura as meias entre as muitas cobertas e o outono se mostra bonito para quem quiser ver.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

personagens e drops de laranja.



Eram apenas personagens, por que não entendiam isso? Que mania esquisita era essa a de acharem que possuíam uma tão grande importância? E ainda por cima acabaram meus drops de laranja. Odeio esses medos tolos de alguns personagens em qualquer proximidade com a vida real. A vida real é aqui fora, e já está cheia, doce. Personagens são escritos no tempo livre, enquanto ainda existe tempo livre. E eu os escrevo como quiser: melosos, medrosos, sensatos, tolos, enfim... Sim, eu também sou um personagem; a diferença é que conheço a narradora de outros carnavais e ela me deve alguns favores. Posso sair daqui quando achar por bem, como quem sai de uma festa sem se despedir dos anfitriões. Personagens com mania de grandeza são estranhos, e me cansam. Com mania de grandeza basta eu! Ai, ai, esqueci minhas meias novas por aí. Andar por aí também me cansa. E a chuva que durou apenas dois minutos... Quando eu ia começar a construí-la como personagem, ela partiu. Melhor assim, escrevo menos e dá tempo de ir comprar mais drops de laranja antes do próximo capítulo da vida real. Nos vemos em algum texto por aí, doce.