quinta-feira, 31 de março de 2011

notas dos últimos dias de março.

Comprei um vestido florido (nenhuma novidade).
Quase não consegui sair da cama,
a vida anda muito crônica para encará-la.
Eu nasci em um rio escuro, lodoso, por isso sou meio peixe,
respiro mal fora d’água e gosto dos dias úmidos.
Ontem, um pássaro piscou para mim de cima da caixa do correio,
corri para abrir,
achando que era o sinal de que missivas me haviam chegado;
nem mesmo um bilhete.
Olhei feio para o pássaro e ele voou,
arrependida, chorei.
Ouvi um vizinho ensaiar trompete e ri dos desafinos,
dos dele, não dos meus.
Minha mão melhorou, mas a ferida ainda não fechou por completo
(alguma ferida fecha por completo?).
O médico disse que ficará uma cicatriz (nenhuma novidade).
Enfrentei uma barata como se isso fosse salvar minha vida,
a barata escapou
e eu desacreditei a salvação.
Fui ao cinema e chorei, menos do precisava,
mais do que o resto do público aprovou.
Vontade de parar com o choro e botar as barbatanas no rio.

sexta-feira, 25 de março de 2011

rosa e hernández.




Rosa e Hernández iam casar, mas ela acabou comprando uma bicicleta. Não que ela não amasse Hernández, não era isso. É que Rosa passava por cima de muitas coisas, mas mentira era algo que a machucava irremediavelmente. E Hernández mentia. Por medo, insegurança, canalhice, hábito, habitus, ou por tudo isso. Rosa ainda achava que ele era o amor de sua vida, porém descobriu que Hernández nunca seria o homem da sua vida, o homem com quem ela dividiria o peso da sacola de feira. Claro que perceber isso doía, mais do que quase tudo que já doeu. Rosa, entretanto, não tinha escolha, ou melhor, tinha, e escolheu que mais valia uma sinceridade na boca do várias mentiras dando rasantes. Ela sabia dos riscos, lembrava da música “no campo do amor, a mulher que não mente, não tem valor”. Mas os valores de Rosa eram outros, melhores? piores? Ela não saberia dizer, eram apenas outros. E Hernández era agora também um outro para ela, um outro que ela não sabia relativizar, não estando tão perto. Rosa aprenderia a ficar só, ela, com seus espinhos sinceros.

sexta-feira, 18 de março de 2011

modern romance.

[os dois estão sentados lado a lado em um bar, mesa de madeira, pouca luz, copos de cerveja]
Ela: Tu está bem? Não está sentindo dor?
Ele: O pé dói um pouco, mas estou bem. Tu notou que temos piercings iguais nas orelhas?
Ela: É?
[ela pega na mão dele, ele a olha tímido, meio sorriso, e ficam assim, carinhando um a mão do outro]
Ela: Eu acho que estou apaixonada pela tua doçura morena.
Ele: Fica, apenas fica?
Ela: Fico. Tu me ensina a andar de bicicleta?
Ele: Sem te deixar cair.
Ela: Eu acho teu nome esquisito.
Ele: Eu acho o teu nome bonito.
Ela: Eu te acho bonito.
Ele: Eu te acho bonita..., e esquisita.
[risos]

ao som de modern romance na versão do tv on the radio.

terça-feira, 8 de março de 2011

hacer amor.



por aqui, ainda não aprendemos a fazer amor por telepatia
sabemos fazer amor, isso sim.
hora de costurar novos tons na veste surrada.
posso bordar tulipas também em teu corpo,
só não peça para regá-las com nada menos que a vida.
a minha vida, for sure,
da tua, eu nada saberei além de arremedos
- o mostrado quando não se sabe/quer viver de todo –
medos? ainda temo o morno.
continuo a doer nos outros, e vice-versa,
porém agora contabilizo de outra maneira.
o estar-aqui é que não pode machucar.
marcar ≠ doer → no olvidar
amor? que es esto?
é costurar um mesmo tecido.

PS: Es difícil hacer el amor pero se aprende (Antonio Cisneros).

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sexta-feira, 4 de março de 2011

coisas que ela quer...



Ele tem uma cor que faz bem, uns olhos escuros que sabem mirar. Algo tão novo parecendo um antigo calor. Ele é pequeno, ela quer abraçar. Ele machucado, ela ninando, segurando no colo, segurando em si. Ela quer apertar a mão dele por um tempo sem relógio, conversar sobre os Azande, ouvir folk songs, recitar Cisneros, oferecer drops de laranja, qualquer coisa, mas de mão. Ela, branca e falante, agora fica corada e perde as palavras. Mas não quer esconder coisas boas, porque aprendeu a mostrar tudo de si para quem sabe ouvir. Ele sabe ouvir. Ela também tem fraturas, aquelas de sempre, as que ficaram ali, lembrando que existem quando o tempo está para chuva. Ela, sempre tão cinza, quer ser sol para ele, quer ter olhos que não sejam de nuvem. Ela quer aprender com ele a pedalar. Ela teria uma bicicleta com cestinho para colher flores (do campo, sinceras como a última noite) e presenteá-lo, com o vestido voando e um sorriso discreto. O sorriso dele também é discreto, mas ela sentiu caber ali dentro. Poderiam passear pela grande cidade, tímidos e trôpegos como Jacques Tati.

São pensamentos dela para ele.

Ela teme o desencontro, mas vê que caminhos diferentes continuam sendo caminhos. E caminhar (ou pedalar) pode levar até à beira de um lugar bonito, novo e com vento fresco.

Ele ainda não sabe, ela sussurra daqui:
- Eu vivo por dias mais frescos...
E o sussurro é também um convite.