quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

ainda sobre não-lugares.

Antônio ia embora naquele dia. Nada de amores platônicos. Ouvira falar que um amor platônico se curava com uma foda homérica. Antônio achava filosofia chato, mas fodas homéricas lhe pareciam interessantes. Antônio odiava pensar que logo estaria no ônibus, um dos não-lugares menos estimulantes que existem. E ainda tinha aquele maldito pó, ou sei lá o que, dos estofados que o faziam espirrar feito um idiota. Espirrar sem parar faz qualquer um parecer idiota. Antônio lembrou de uma vez em que viajava a Porto Alegre com a ex-namorada (foi na época em que ambos rasparam o cabelo para fazer mimetismo de amor à lá Vinícius) e ficaram se tocando no ônibus, com um casaco dela tapando as mãos e o resto. Ela gozou quase em silêncio e depois lhe disse: “Eu sempre soube que me casaria com alguém que me fizesse gozar em um ônibus rumo a Porto Alegre”. Antônio gozou. Não se casaram. Foi a única vez em que um ônibus lhe pareceu estimulante.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

carta a Carlos Contente.

Contente.

Estou escrevendo para dizer que tua expo no Paço Imperial mudou a paisagem. Talvez isso não te importe, enfim, as coisas que escrevo não me devem satisfação, nem a ti. Andei perdida no Rio, sabe. Sempre voava por ali, nas minhas conexões para casa, para o meu sul. Nesses dias resolvi ficar. O centro do Rio lembrou o centro de Porto Alegre e eu me senti menos trêmula. Ando muito trêmula desde que mudei pra Vitória. Tinha medo de achar o Rio parecido com Vitória. Não achei. Mas me senti muito sozinha andando sozinha por lá. É estranho visitar lugares que não me pertencem, que não remetem a histórias nem minhas nem dos meus. Estou parecendo possessiva sem querer parecer assim. A verdade é que tenho andado por aí e passado por muitos não-lugares. Não tenho conseguido marcar nem ser marcada pelas paisagens. Sempre consigo ser marcada pelas histórias que ouço. Eu estava achando o Rio muito bonito. Até me senti feliz quando encontrei por acaso no Aterro do Flamengo as bandas de congo das comunidades de Retiro e de Araçatiba. Foi bom rever as pessoas e sambar-sem-saber-sambar na areia. Mas não era nada do Rio que estava me marcando, eu é que já estou marcada pelas comunidades quilombolas do Espírito Santo. Sempre as histórias que ouço. Mas o que eu quero dizer, é que tu me contou uma história. Tu me contou uma história no Rio de Janeiro. E eu me senti marcada no pouco (na verdade nem tão pouco) tempo em que fiquei na tua/minha sala de exposição. Era a minha sala, sabe. Eu ri ali olhando tudo o que consegui ver e ouvindo as músicas me doendo. Mesmo doendo eu ri. E me achei, me senti menos sozinha. Foi doce sentir a minha amargura encontrando a de alguém que eu nem sei quem é, e concordando com ela em muita coisa. Eu senti menos medo de andar por aí. Gostei de saber que posso encontrar, num repente, num domingo, num antes não-lugar, algum desgostoso (ou vestígios de algum desgostoso) que ainda não perdeu o lirismo. Ah, no domingo mesmo comprei um bloco e voltei a desenhar.

Precisava te contar, mesmo sem saber se tu queria ouvir. Vou publicar essa carta no meu blog (vestígios de adolescência que não quero perder) e quem sabe encaminhar outras pessoas para as tuas/minhas/delas histórias. Obrigada pela tua intromissão na minha vida.

Beijo.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Adios

Uma vez eu disse a um pirata:
- Não sou monogâmica, mas te quero por inteiro.
A frase saiu de uma maneira calma.
O pirata entendeu isso; foi um dos poucos.
Interessante como as questões mal resolvidas continuam as mesmas.
Os temores também.
Minhas mãos tremem, sempre.
Eu continuo repetindo a frase que disse àquele pirata; mas para outros salteadores.
Agora penso:
“De cada amor tu herdarás só o cinismo”...
Menos do amor com o CrisK.
Desse amor nós herdamos a doçura e a poesia.
Nem tudo se perde nessas fronteiras do Mercosul.
Tomaremos um mate, dançaremos tango e diremos adios.
E será belo.
Minhas mãos tremem, sempre.
Continuo não entendendo a posse.
A propriedade continua sendo um roubo.
Mas entendo a entrega, duradoura ou não.
E entendo andar de mãos dadas, tremendo ou não.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

davi e cecília - Verão.

Cecília atendeu. Davi ficou fazendo aquilo de repetir o que ela perguntava ao telefone. “Davi, sei que é tu. Onde tu tá, guri?” Na Crystal. Era claro que ele estaria na Crystal. Cecília disse que o encontraria em meia hora. Fazia tempo que Cecília não aparecia por lá, mas o português, dono do boteco, reconheceu-a. Davi estava sentado nas mesas do fundo, nas mesas de ferro que Cecília gostava. Cecília sentiu que Davi ficou surpreso com o próprio encanto demonstrado ao vê-la. Abraço curto. Cecília se esqueceu de marcar no relógio a hora em que se viram. Pediram cerveja. Davi havia chegado à cidade havia duas horas. Ele cumpriu a promessa de que ela seria a primeira pessoa a ser procurada. Cecília contou de um encontro inesperado que tivera com Luciano no aeroporto (não lembrava mais se em Congonhas ou Guarulhos) há um ano: “Luciano quebrou todo o clima hollywoodiano dizendo que eu estava gorda”. Davi reclamou de Luciano e de sua gentileza francesa, e completou, tipicamente: “Tu tá tri gata, Cecília”. Ela achou Davi igual, mais barbudo, mas impressionantemente igual. Saíram da Crystal antes do português avisar que iria fechar. Desceram a pé pela Coronel Niederauer e reclamaram da pastelaria. Nostalgia ao passarem pelo Bar do Garça e concordância de que não tinham mais idade para beber na frente da Parada como antigamente. Nada contra os jovens, apenas haviam perdido a paciência de embriagarem-se com cerveja quente servida em copos plásticos, e sentados no meio fio com as baratas costumeiras da cidade. Entraram no pub; eram burgueses agora. Ninguém esperava que Davi estivesse na cidade. E ninguém esperava que Cecília chegasse com Davi. Mas ninguém comentou nada. Cecília já estava sentindo ciúmes por Davi conversar com os velhos amigos e deixá-la de lado. Não lembram porque, mas uma hora Davi olhou-a, daquele jeito que ela nunca sabia se era debochado ou não, e disse: “Tu é só papo, Cecília. Quer casar comigo agora?”. Cecília odiou ter respondido exatamente como há quase oito anos atrás: “É claro que não”. Ela ficou tonta com o déjà vu. Davi pediu para ir embora com Cecília. A moça queria ainda passar em outro bar; Davi disse que eles não precisavam disso. Cecília precisava. Foram. O lugar estava quente e úmido. Um estranho fotografou o rosto de Cecília enquanto ela comprava uma cerveja. “Retratos metidos a alternativos de pessoas rotuladas como indies”, sentenciou ela em pensamento. Voltou à mesa e disse baixinho a Davi: “Meu ex-marido está aqui”. Davi levou-a embora. A noite estava quente como há muito Cecília não sentia, ao menos não no sul. No quarto não havia ventilador. Deitaram juntos no colchão inflável, irritantemente barulhento. Davi disse coisas incompletas, como sempre o fizera: “Quando eu te vi entrando, Cecília... Tu sabe que é difícil encontrar uma guria como tu... Eu não sei por que eu fiquei sempre tão na defensiva...”. Cecília passou a mão no rosto de Davi e falou: “Mas agora estamos aqui”. Cecília achou-se velha pelo que disse. Por que ela tinha que estar sempre tentando parecer tão madura? Não falaram mais nada durante a noite. Beijaram-se muito. Cecília achou o beijo confortavelmente familiar. Ela sempre gostara do beijo de Davi por achá-lo ingênuo. Ele lhe fez gozar chupando-a calmamente. Davi não gozou. Adormeceram bêbados e grudentos de suor. Cecília acordou logo. O calor deixava-a mole, os mosquitos picavam e Davi roncava um ronco de embriagados. Cecília achou patético ele dormindo assim, sem nem ter tirado a camisinha. Ela tentou acordar Davi por três vezes para dizer-lhe que iria embora. Cecília lembrou que nas poucas vezes as quais dormira na casa de Davi, quando ambos ainda moravam naquela cidade entre os morros, ele sempre reclamara por ela nunca ficar com ele até o meio-dia. Cecília foi embora assim mesmo. Quando saiu do elevador, riu da barata morta no piso. Riu também por se achar agora muito nova, parecendo uma adolescente. Amanhecia abafado. Davi ligou no final da tarde perguntando se estava tudo bem: “É que eu acordei com uma queimadura no dedo do pé. Queria saber se aconteceu alguma coisa bizarra contigo também?”. Não aconteceu, embora Davi fizesse tudo parecer sempre muito surreal. Não se falaram na sexta-feira. Davi ligou no sábado: “Me chama pra fazer qualquer coisa, Cecília, tomar um suco de laranja que seja”. Ela tinha um compromisso. Encontrou Davi bem tarde no bar quente e úmido. Beberam separados; dançaram Cansei de Ser Sexy juntos. Davi levou-a embora. Imitou um tom rodriguiano, passou o braço por cima do ombro dela e disse: “Faz de conta que tu é minha mulher esta noite, Cecília”. Riram. Cecília gostava de como Davi sempre falava o nome dela no final das frases. Atravessaram o Calçadão enquanto ele reclamava que ninguém entendia os sinais e citava Roland Barthes. Riram. Sempre se divertiram juntos. Davi providenciou um ventilador. Ele disse que tinha a noite inteira para fazê-la gozar. Precisou de bem menos tempo do que isso. Davi lembrou que eles haviam transado pouquíssimas vezes um com o outro. Cecília completou: “Pouquíssimas vezes e bêbados”. Ela achou triste quando Davi disse: “Nós passamos esses quase oito anos jogando um com o outro”. Ele falou muitas vezes em como eram jovens quando se conheceram. Cecília chupou Davi e pensou em como sempre achara o pau dele enorme. Ela nunca dissera isso a Davi. Deveria ter dito, e não disse mais uma vez. Dificuldades em colocar a camisinha. Riram. As bobices de sempre. Transa maluca. Dormiram abraçados. Davi quis transar pela manhã; Cecília estava preguiçosa. Ele conseguiu despertá-la. Cecília sentiu um carinho enorme por Davi enquanto se comiam; achou que até o amasse. Quem sabe um dia. Davi iria embora naquela noite, mas não estava melodramático como havia sido durante esses quase oito anos, até inclusive a noite anterior. Davi buscou coca-cola com gelo para Cecília. Ela não quis que ele a acompanhasse até a saída do prédio. Abraçaram-se forte. Ele disse: “Te cuida, Cecília”. Ela abanou quando a porta do elevador abriu. Pensou que os encontros dos dois seriam sempre assim. Achou bom. Ainda estava no elevador quando ouviu o sino da catedral começar a badalar o meio-dia. Cecília sorriu. Davi sorriu. Estava quase tudo igual por ali.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Ninguém estava acreditando naquilo de vida em cor-de-rosa mesmo.
Cecília não tinha certeza do que seu próprio olhar dizia.
A noite quente nem incomodava.
Os olhos invertidos.
Cecília estava sentindo falta daquela paz,
agora ela percebia.
O corpo quente – sentir o amor queimando a pele todos os dias?
“Dá a mão?
Não me olha com os olhos invertidos de quem quer me odiar mas não pode”.
Cecília não conseguiu falar.
Ele era tão lindo.
Ele ainda era o menino mais bonito de qualquer festa.
Dançar pela antiga avenida de madrugada.
Quer?
Cecília sentia-se segura.
“Me esconde aqui, nesse silêncio?”
Cor-de-uva.
Ela lembrou os dois caminhando no inverno.
Geada.
Cecília queria sentir a geada.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Em casa.
Calor, de ser impossível qualquer movimento.
Não sou mais assim. Lembra como era o meu assim?
Manhã morna. Odeio manhãs mornas.
Queria que ele procurasse nos sebos de São Paulo um cartaz de algum filme do Glauber Rocha.
Parênteses para trecho de conversa através de tecnologias da internet.

eu: ai, nem acredito, começou a chover!
amigo no interior do Espírito Santo: sopra daí, pra ver se chega aqui.
eu: não, não quero gastar a minha chuva. deixe-me ser egoísta com ela.
amigo no interior do Espírito Santo: guarde para ti, molhe as pontas dos dedos... mas ao menos traga um copo cheio.

Foi um bonito momento, refrescou o dia.
Mas ainda ele em São Paulo. Mais do que 15 dias, na verdade.
Não estou com medo. Não sou mais assim.
Sei dos trechos da minha vida que estão esburacados. Sei um por um.
Agora sei que deixo os buracos. Eles não devem ser tapados.
Refrescou. Frescurinha.